segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Só tem bife a cavalo

Quatro horas de estrada depois, chegamos ao Hotel Cristo Rei, no centro de Poço Fundo, uma cidadezinha de 15 mil pessoas no sul de Minas. Eram quase dez da noite, quase tudo estava fechado exceto um posto e um botequinho. No dia anterior, tinha pedido à dona do hotel por telefone:

- Como faço para comer se chegar de noite, pelas nove ou dez?
- Ah, faz assim, vocês têm que comer o bifão de Poço Fundo, é a melhor coisa que tem aqui. Se quiser, peço pro dono do barzinho deixar reservado.

Beleza. Vim pensando no tal do bifão, que coisa boa não deveria ser, mas com a curiosidade atiçada pelo comentário da mulher. Chegando ao tal do barzinho, não tinha mais ninguém, só um tiozão com cara de dono de boteco que veio nos atender na única mesa deixada bem no centro do salão.

- XXXXXXX bife a cavalo.
O sotaque era tão forte que não dava para entender. Mas de certo ele estava oferecendo o tal do bifão. Eu disse que sim, queria para quatro, enquanto a minha chefe falava em japonês com Tóquio pelo telefone. Imaginei como o tiozão deveria estar interpretando aquela cena. Alguém com cara de asiático aparecer lá já seria por si só esquisito o bastante. Agora, uma cena daquelas daria assunto para mais de mês.

- Esse tipo de lugar, em São Paulo, só tem na periferia - explicou o motorista à chefe.

Veio o bife, preparada pela mulher do tiozão, que chegou com uma cara de quem havia sido arrancada de uma noite deliciosa de sono. Achatadíssimo, com uma cobertura bem diferente do que eu esperava: uma grossa camada de ovo, bacon, queijo derretido e tomate. Dá para entender a razão do sucesso. Para acompanhar, arroz e feijão cheios do sabor que faltam no bandejão da empresa. Minha chefe e o motorista adoraram (o queijo é mais gostoso que em SP, disse ele, com certa razão), o câmera afirmou preferir a versão original e eu não pensei muito. Lá pelas tantas, veio o tiozão de novo:

- Olha aqui um purê, se vocês quiserem. Mas tá frio! - dessa vez deu pra entender a frase toda.

A conta: 9 reais por pessoa, incluindo um refrigerante para cada. Custo-benefício justos, coisa que anda rara de ser ver em São Paulo. Eu voltaria lá só pelo arroz e feijão, juro mesmo. Se algum dia pisar em Poço Fundo, talvez valha a pena tentar: Bar do Tiãozinho. A nota fiscal ele deixa você preencher.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

No Rio, faça como os japoneses


É difícil trabalhar no Rio. O mar e o céu cheio de sol te torturam, dizendo que você é um idiota por estar dando duro quando se tem tanta coisa boa para fazer. Foram cinco dias de trabalho intenso, deslizamentos, histórias tristes, equipamentos pesados e lama. E para lembrar a beleza que existe, só uns minutinhos: os da janta.

Minha companhia eram dois japoneses, uma delas minha chefe, que é fã de picanha. Ela disse que é a única coisa realmente gostosa que comeu até agora no Brasil. Não é a primeira vez que ouço isso de um japonês. Eles geralmente não entendem por que a gente gosta de feijão e farofa, mas entendem rápido a mágica de um pedaço de picanha ainda rosado no centro, com um filetinho de gordura do lado, os sucos brilhando conforme a faca passa.

Daí que comemos picanha três vezes. Duas numa churrascaria ótima, em Copacabana, e a terceira no bar Garota de Ipanema, lugar-comum da turistada que baixa em Ipanema. Nesse último a carne veio fumegando na chapa de ferro com réchaud, e você mesmo tem que terminar de grelhar. Comendo aquilo, fica difícil entender por que outros países têm contra-filé, filé mignon, mas não têm picanha. Talvez porque a picanha só atinja a transcendência quando é feita como churrasco, temperada com sal grosso, e não é assim que os outros países preparam a carne.

Cruel é mostrar o resultado de disso tudo na praia depois, ali a duas quadras dos restaurantes. Ai, o Rio é uma tortura constante.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Cozinha de improvisos

Tá, todo mundo tem direito em sonhar com uma daquelas cozinhas cheias de tudo, frigideiras múltiplas penduradas na parede, faca desenhada com cuidado para não esfarelar os pães da Sicília (como serão eles?), máquina para cozinhar o rosbife em baixíssima temperatura e deixá-lo perfeito. Mas a realidade doída é que na cozinha de facto falta tudo, às vezes até o mais básico, a depender dos rendimentos da casa.

Eu, por exemplo, uso uma mesma faca para quase tudo. Me dou ao luxo de ela ser de cerâmica, bonitinha, comprada no Japão. Mas bem posso pensar que à família dessa pertenciam trocentas outras que não pude comprar e que sorriram para mim na loja, dizendo "me leve, me leve".

O mesmo acontece com as panelas. Hoje fui fazer um molho à bolonhesa, delícia, que está agora lá no fogo. A receita pedia uma panela de fundo grosso, pois precisa deixar cozinhando por três horas (deixarei só duas porque preciso sair). Cadê? Revirei, revirei, e só achei aquelas de fundo bem fininho, feitas para refogar o quiabo em cinco minutos. Daí apelei: estreei uma wok de ferro que comprei estes dias.

O fundo era grosso, então por que não? O princípio dessa panela é refogar em alta temperatura, que é como se fazem pelo menos metade dos pratos chineses. Mas existe uma exceção: um porco cozido por horas, um dos meus pratos favoritos na vida, que é feito justamente na wok. Se cozinha porco, por que não cozinharia molho italiano? Tá, sei que não é tão simples, mas na lógica da cozinha do dia-a-dia é assim que funciona. Você pensa: "se X serve para Y, e Y se parece com Z, então X serve para Z". O problema é a subjetividade do "parece" - em que medida uma receita chinesa de porco cozido é semelhante a um molho à bolonhesa?

Às vezes dá certo, às vezes você se ferra. Desta vez ainda estou esperando para ver. Enquanto isso, posto a foto do casamento inesperado.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Goulache de Ano-Novo

Sei que já está um pouco tarde para falar de ceia de virada de ano, e talvez fosse até melhor esperar o fim deste aqui para deixar o assunto mais pertinente. É o que fazem muitas revistas de comida, pelo menos. Mas não tenho esta obrigação, ainda bem, então vou falar mesmo atrasado.

Cheguei à Alemanha no dia 31 de tarde. Acabado, claro, e morrendo de medo do frio. O trem saindo de Frankfurt, um vermelhão velho cujas portas quebradas fechavam em cima das pessoas, cruzou por umas três horas os cenários de contos de fadas que eu revia um atrás do outro na cabeça. Tanta neve. Na chegada a Bonn, eram quase seis da tarde e eu já sonhava com a ceia de Ano-Novo. No dia anterior, o menino tinha me perguntado o que eu queria: respondi grosso que ele devia pensar sozinho, pois tinha tempo de sobra e eu precisava trabalhar. Depois de ficar bravo, falar que eu ia comer Cup Noodles, não tocou mais no assunto. Daí que eu não tinha ideia do que seria minha última refeição de 2010.

Dito assim até parece dramático. "Última refeição de 2010". Não é pra ser, não, só queria uma comida boa, com cara de Alemanha, para predizer os nove dias de comilança seguintes.

A ceia: goulache de pimentão acompanhado de batatas, cervejas (pilsen, de trigo...), sorvete de Baileys. Nada assim, tão diferente, exceto por um ponto crucial: as batatas tinham sido cozidas só com sal (ele ligou pro pai para confirmar se só isso mesmo) e deveriam ser amassadas no prato de servir (!!), com o garfo, e depois misturadas ao molho aconchegante do goulash. Não era a primeira vez que eu usava batatas no lugar de arroz...Mas assim, sem ser purê nem nada, na seca?

Os goulaches que eu tinha comido eram primos do estrogonofe, mas esse tinha uma cara mais de carne cozida brasileira, mas tingido com o vermelhão da páprica. O creme de leite tinha de ser misturado direto no prato, veja só. A carne para goulache tinha acabado no supermercado, então ele comprou uma outra que ficou meio farinhenta. Mas tava bom, mesmo, o suficiente para completar o vazio de seis meses de distância.

Bebi várias garrafas de cerveja e caímos no sono às dez da noite. Acordei um pouco com os fogos, fui ao banheiro e, sei lá por quê, desmaiei. Pela primeira na vida. Retomei a consciência com o gosto da cerveja e do pimentão na boca. Voltei para a cama e dormi, receoso de que as batatas tivessem me causado algum revertério maluco. Mas não era nada, não.